Vou tratar aqui de um assunto um pouco delicado, e que me deixa
com raiva, que é o preconceito musical. Existem várias abordagens
e uma das que mais me chama a atenção é a classificação discriminatória
dos estilos musicais. Por exemplo, quando alguns dizem "eu faço samba DE VERDADE"
ou "isso que toca nas rádios não é (o estilo em discussão)", na verdade
estão apenas exaltando suas vaidades e preconceitos. Afinal, quem são
eles para se acharem "donos" dos estilos musicais? É claro que dentro
de uma abordagem teórica dos acadêmicos da música é válido classificar
até com certo rigor os estilos musicais para efeito de estudo. Fora
desse contexto, dentro de um conceito musical mais geral, isso não se
justifica.
Tratemos então do exemplo FUNK, notadamente o Funk brasileiro e
carioca, mais especificamente. O estilo Funk sempre foi acompanhado de
muita polêmica. Nos anos 70 foi uma parte do movimento de afirmação dos
negros, com os Bailes da Pesada de Adermir Lemos. Depois nos anos 80,
ganhou de vez os suburbios e de certa forma saiu da mídia. Mas não
morreu como poderiam pensar alguns. No meio dos anos 80, o Funk voltou
a ter visibilidade na mídia (mídia não especializada, já que algumas
rádios transmitiam programas funk). Depois disso, o Funk até virou
moda. Claro que não faltariam críticas. A mais comum é aquela dos que
definem que o Funk carioca não é funk, que Rap de verdade é outra
coisa, etc. Há aí uma tentativa de aplicar conceitos teóricos de música
para classificar o estilo, de modo bem diverso do conceito popular. O
Funk carioca começou
como movimento baseado no movimento negro americano dos anos 70. Nos
anos 80, os bailes funk ganharam os subúrbios cariocas tocando música
negra americana, o chamado RAP (Ritmo e Poesia). Em geral, o Funk
carioca englobava os estilos de RAP chamados FREESTYLE e MIAMI BASS. Já
o movimento negro de São Paulo passou mais para o RAP de carater
contestador e social. O estilo MIAMI já diz a origem, enquanto o RAP
contestador se baseou mais no RAP de Nova Iorque, que tinha também uma
carga forte de grupos étnicos, como porto-riquenhos. O estilo
MIAMI continha um ritmo dançante, com ritmo e melodia
frequentemente sampleados de músicas Funk dos anos 60 e 70 (como as de
James Brown), repleto de pornografia e palavrões, deboche e ironia. O
estilo Nova Iorque também tinha letras proibidas, mas de contestação,
críticas e mais recentemente apologia ao crime. Essa divisão se
refletiu no mundo funk brasileiro, com o Rio sendo Miami e São Paulo,
Nova Iorque. Os bails funk carioca pegaram bem o espírito da coisa e
para cada música americana que era tocada era dado um apelido irônico,
baseado no que as palavras dos refrões pareciam dizer (em português) ou
até em precárias traduções de parte dos títulos.
Assim, Girl You Know It's True, do Milli Vanilli (que era uma fraude) virou a MELÔ DA VERDADE e Catch me I'm Falling, de Pretty Poison, virou a MELÔ DO PODER
por causa do seu refrão "Ooooh Baby" que parecia "Uuuuu podeeeeer" em
português. Na verdade, nos bailes as letras em inglês eram traduzidas
de forma irônica e agressiva, com muitos refrões pornográficos, ou de
apologia à violência e referência às drogas. O que causou muitas
críticas de defensores de outros estilos musicais, que esqueciam que
violência e drogas faziam parte dos outros estilos musicais. Afinal, se
baile funk era coisa de traficante, também era notório que astros do
rock e seu público eram ávidos consumidores. Vários astros tiveram
problema com drogas, overdoses, etc.
As letras adaptadas refletiam a realidade e cultura das localidades dos
bailes. Assim, eram cantados refrões como "eu vim, eu vim, eu vim
da funabem, agora sou do bicho e não dou mole pra ninguém". Aliás, como
descreve Hermano Vianna em seu
"Mundo Funk Carioca", de 1987, foi nos bailes funk que surgiu o
"é o bicho", quando um bando armado invadiu um baile procurando alguém
para executar, gritando "É o bicho!" e o público respondeu com "tá
legal! tá legal!". Logo a cidade toda estava usando a gíria "é o bicho
é o bicho! tá legal tá legal!". Muitos que odiavam funk acabavam
repetindo as gírias dos morros. Foi assim que nos anos 90 surgiram
"sangue bom","demorou","colé choque","brou" e outras mais..
Claro que muitos outros refrões eram de conotação sexual, não entrarei
em muitos detalhes sobre eles aqui. Tudo isso se encaixava bem no
estilo de Miami, que em suas letras originais também continham
palavrões e muita pornografia. Mas fez com que o funk não fosse muito
bem visto, o que fez com que os discotecários e produtores funk
divulgassem mais os estilos FREESTYLE e FUNK MELODY. Na verdade o que
se chama Funk Melody é nada mais do que uma parte daquilo que
genericamente se chama FREESTYLE nos Estados Unidos. Aqui no Brasil uma
variação do FREESTYLE, com letras românticas e ritmo mais suave foi
denominado Funk Melody. Um dos maiores produtores desse estilo Funk
Melody, Tony Garcia, esteve no Brasil e acabou incorporando o termo
Funk Melody. Outro símbolo desse estilo é o cantor Stevie B. Ao mesmo
tempo, o produtor DJ Marlboro procurava criar o Funk Nacional com os
seus discos Funk Brasil, que tinham bastante ironia como as dos refrões
dos bailes, porém sem exagero nos palavrões. O Funk Brasil 2 traria a
excelente "Se essa zorra acabar", uma versão da popular "Se a canoa não
virar". Infelizmente a música foi censurada do disco. Porém a violência
do Rio só aumentou, os bailes funk chegaram a ser proibidos em 1992 e a
facilidade da tecnologia mais barata, juntamente com o desprezo dos
críticos e dos "intelectuais" pelo funk levou o funk a ser realmente
marginal. As letras irônicas deram lugar aos raps de apologia ao crime,
de forma implícita ou explícita. Alguns dos cantores desses raps
conseguiram lugar ao sol, e começaram a gravar letras românticas,
alegres e totalmente diversas de qualquer referência ao crime. As
antigas versões adaptadas, com pornografia e palavrões deram lugar a
letras que fariam as antigas parecerem coisas de crianças inocentes.
E aí, durante todo esse processo, não faltaram aqueles que diziam que isso não era RAP. Como demonstramos aqui, o estilo Miami é parte de um conjunto universal de estilos de rap. Outros afirmavam que tocavam o "verdadeiro funk, distinto do funk do morro", esquecendo que as músicas Miami eram baseadas nas batidas funk dos anos 70, inclusive muitas eram simplesmente músicas sampleadas (o que rendeu muita polêmica e processos contra rapers americanos). Os raps atuais por sua vez, utilizam samplers dos raps Miami dos anos 80. Portanto, trata-se de variação do mesmo estilo. Se há uma crítica às letras das músicas com apologia ao crime ou de conotação sexual (que não representam a totalidade dos funks), que se faça, porém isso não pode de forma alguma servir de argumento contra o estilo. Mesmo porque letras polêmicas encontramos em qualquer estilo.
Outros estilos musicais também sofrem com o mesmo preconceito. O pagode é um deles. Muitos fazem cara feia para o estilo e dizem gostar do "samba de raiz". Mas que samba de raiz é esse? Que raiz é essa?
Ora, raiz verdadeira é o pagode, típica expressão popular brasileira, dos encontros informais de familias e vizinhos, em churrascos de fundo de quintal. O autêntico samba de fundo de quintal. Afinal pagode é isso..divertimento. "O que é isso meu amor, venha me dizer. Isso é fundo..de quintal, é pagode pra valer"
E isso se reflete com muitos estilos musicais.Na minha humilde opinião, tudo isso é preconceito e vaidade. Parece que algumas pessoas não aprenderam a conviver na democracia. Querem impor seus gostos aos outros, ridicularizando e diminuindo aquilo que não faz parte do seu gosto, por se julgarem melhores e mais cultos, justificando o gosto alheio como "expressão de um povo sem cultura". Será que alguém pode ser considerado
melhor que outro só porque frquenta concertos de orquestras ou óperas? Será que existe mesmo um padrão correto para cada estilo de música e variações são sempre erradas ou "estilos menores"? Será que é realmente importante classificar os estilos musicais de forma rígida dentro de um contexto de cultura popular? Será que a diferença dos instrumentos utilizados serve para diminuir a importância de um estilo?
Creio que há espaço para muita música no mundo. Para os acadêmicos, para o povo em geral, para os afinados e desafinados. E para todos os estilos, independente de nomenclaturas e classificações. Afinal, antes de conhecer qualquer nome de estilo musical, as crianças cantam e são felizes, sem se preocupar se a música vai ser considerada boa ou ruim, parte desse ou daquele estilo. Simplesmente cantam. Será que já esquecemos a alegria de ser criança?
# escrito por Kodai : 7/15/2004 11:12:00 PM


